quinta-feira, novembro 09, 2006

Foda-se

por Millôr Fernandes
(adaptado)

O nível de stress de uma pessoa é inversamente proporcional à quantidade de "foda-se!" que ela diz.
Existe algo mais libertário do que o conceito do "foda-se!"?O "foda-se!" aumenta a minha auto-estima, torna-me uma pessoa melhor.
Reorganiza as coisas. Liberta-me.

"Não quer sair comigo?! - então, foda-se!"
"Vai querer mesmo decidir essa merda sozinho(a)?! - então, foda-se!"
O direito ao "foda-se!" deveria estar assegurado na Constituição.

Os palavrões não nasceram por acaso. São recursos extremamente válidos e criativos para dotar o nosso vocabulário de expressões que traduzem com a maior fidelidade os nossos mais fortes e genuínos sentimentos. É o povo a fazer a sua língua. Como o Latim Vulgar, será esse Português Vulgar que vingará plenamente um dia.

"Comó caralho", por exemplo. Que expressão traduz melhor a ideia de muita quantidade que "comó caralho"?

"Comó caralho" tende para o infinito, é quase uma expressão matemática.
A Via Láctea tem estrelas comó caralho!
O Sol está quente comó caralho!
O universo é antigo comó caralho!
Eu gosto do meu clube comó caralho!
O gajo é parvo comó caralho!
Entendes?
No género do "comó caralho", mas, no caso, expressando a mais absoluta negação, está o famoso "nem que te fodas!".
Nem o "Não, não e não!" e tão pouco o nada eficaz e já sem nenhuma credibilidade "Não, nem pensar!" o substituem.
O "nem que te fodas!" é irretorquível e liquida o assunto.Liberta-te, com a consciência tranquila, para outras actividades de maior interesse na tua vida.
Aquele filho pintelho de 17 anos atormenta-te pedindo o carro para ir surfar na praia? Não percas tempo nem paciência.Solta logo um definitivo:
"Huguinho, presta atenção, filho querido, nem que te fodas!".O impertinente aprende logo a lição e vai para o Centro Comercial encontrar-se com os amigos, sem qualquer problema, e tu fechas os olhos e voltas a curtir o CD (...)
Há outros palavrões igualmente clássicos.
Pense na sonoridade de um "Puta que pariu!", ou o seu correlativo "Pu-ta-que-o-pa-riu!", falado assim, cadenciadamente, sílaba por sílaba.
Diante de uma notícia irritante, qualquer "puta-que-o-pariu!", dito assim, põe-te outra vez nos eixos.
Os teus neurónios têm o devido tempo e clima para se reorganizarem e encontrarem a atitude que te permitirá dar um merecido troco ou livrares-te de maiores dores de cabeça.

E o que dizer do nosso famoso "vai levar no cu!"? E a sua maravilhosa e reforçadora derivação "vai levar no olho do cu!"?
Já imaginaste o bem que alguém faz a si próprio e aos seus quando, passado o limite do suportável, se dirige ao canalha de seu interlocutor e solta:
"Chega! Vai levar no olho do cu!"?
Pronto, tu retomaste as rédeas da tua vida, a tua auto-estima.
Desabotoas a camisa e sais à rua, vento batendo na face, olhar firme, cabeça erguida, um delicioso sorriso de vitória e renovado amor-íntimo nos lábios.
E seria tremendamente injusto não registar aqui a expressão de maior poder de definição do Português Vulgar: "Fodeu-se!". E a sua derivação, mais avassaladora ainda: "Já se fodeu!".
Conheces definição mais exacta, pungente e arrasadora para uma situação que atingiu o grau máximo imaginável de ameaçadora complicação?
Expressão, inclusivé, que uma vez proferida insere o seu autor num providencial contexto interior de alerta e auto-defesa. Algo assim como quando estás a sem documentos do carro, sem carta de condução e ouves uma sirene de polícia atrás de ti a mandar-te parar. O que dizes? "Já me fodi!"
Ou quando te apercebes que és de um país em que quase nada funciona, o desemprego não baixa, os impostos são altos, a saúde, a educação e … a justiça são de baixa qualidade, os empresários são de pouca qualidade e procuram o lucro fácil e em pouco tempo, as reformas têm que baixar, o tempo para a desejada reforma tem que aumentar … tu pensas “Já me fodi!”

domingo, novembro 05, 2006

Regresso A Casa

O dia amanheceu carregado, nuvens cinzentas pintavam os céus. A comum "nortada" como se referem os autóctones desse lugar chamado Catxines ao vento típico de fim de tarde no litoral, bufava irrequieta e insistentemente. Ameaçava chover. Enfim...nada de anormal, apenas mais um dia entre tantos outros, não fosse o facto do líder supremo e comandante (havia, aliás, quem já se dirigisse a tão distinta figura como "meu imperador") desse pequeno centro ibérico se encontrasse de visita ao sítio que o viu nascer.
El comandante Tcholes encontrava-se nessa manhã em visita oficial a Catxines. Algumas pessoas lá da terra queixavam-se de que o poder lhe havia subido à cabeça, que já não era o mesmo. O mesmo não era, dado que numa das inúmeras batalhas travadas na célebre conquista ibérica-operação que Tcholes apelidou de "chupai-ma piça hermanos do cuaralho!!!"-Tcholes tinha sido ferido gravemente na coxa direita por um machado inimigo, o que lhe trouxe alguns incómodos na sua vida sexual... A sua bengala fazia agora parte da sua imagem de marca.
Com o domínio de toda a Península Ibérica, Tcholes passou a ter um ainda maior peso na cena internacional. A RUCC passou a fazer parte do conselho de segurança da ONU. Certos países, no entanto, não viram com bons olhos a anexação de Espanha. Começando pelos próprios espanhóis. A União Europeia ainda esboçou tomar medidas drásticas para impedir este acto abominável de acontecer, só que Tcholes-no seu estilo inconfundível-marcou uma reunião com o presidente da Comissão Europeia-que também havia sido português em tempos mas que estava no exílio em Bruxelas dada a sua discordância em ser catxineiro-e esbofeteou-o, pura e simplesmente, em frente a todos os presentes na dita reunião como se de uma rameira se tratasse e avisou: "tu comigo é mansinho mano, tajmoubir? Fazes-me alguma e apanhas um balázio nos dentes!". Escusado será dizer que a resistência da UE ficou-se por aí.
Esta atitude extrema levou a uma corrida ao armamento de grande parte do mundo ocidental, oriental, antípodas e pólos inclusivamente-os pinguins armavam-se como se não houvesse amanhã!
Este facto levou Tcholes a iniciar o PNC (Programa Nuclear Catxineiro) sendo o Alentejo reservado para os testes subsequentes.
Ninguém sabia qual seria o próximo passo de Tcholes. Ninguém sabia o que ia na cabeça daquele atrofiado ser. Toda a gente em torno do seu general, era esse o lema que imperava nas Catxines, e era isso que todo o povo planeava demonstrar no discurso de Tcholes na sua terra natal.

Tudo se preparava ao mínimo pormenor. O toldo para que o digno interloctor não se molhasse. Todos os seus apoiantes mais fervorosos seriam estrategicamente colocados nas primeiras filas para que o entusiasmo fosse transbordante.
Havia uma expectativa palpável nessa tarde, apesar das condições climatéricas não serem as ideais. Todo o povo se preparava para algo grandioso. O regresso do filho pródigo. E que melhor regresso se podia pedir do que a volta de Tcholes após a conquista de toda a Península Ibérica. Era impossível haver melhores condições para a reaproximação de Tcholes às suas raízes. Há a constatar que algo havia mudado nele. O tempo que passara em campanha bélica por toda a península fê-lo um homem mais impiedoso, ganancioso e cruel. Ele já não matava com o intuito da conquista nem com objectivos ultra-nacionalistas. Nas últimas fases da campanha ibérica Tcholes surpreendia continuamente a sua armada cometendo constantemente actos maléficos de pura raiva incontrolada, o que fazia com que os seus homens começassem a não se reverem no seu líder. O que tinha começado como uma campanha em nome da identidade catxineira tinha, de certa forma, escapado ao controlo de tudo e de todos. Até ao do próprio Tcholes, que cego de raiva dor e mágoa que o vendava, não tinha o discernimento necessário para avaliar as situações e organizar o seu exército.
Muito se especulava no seio do parlamento da RUCC-e mesmo no do seu partido FC-o que estaria afectando de forma tão profunda o tão amado líder.

Pois o passado ano para Tcholes não tinha sido propriamente o mais fácil. Sua mãe havia falecido esse mesmo ano vítima de doença fulminante e Tcholes não havia estado a seu lado dada a demanda de sua presença no campo de batalha, e isso afectava-o para do que palavras alguma vez poderão exprimir. Seu pai havia cortado relações com ele discordando do rumo que o seu filho estava a dar à RUCC-sendo que o seu pai havia sido na juventude de Tcholes o grande motivador da sua cria, sempre encorajando-o e incentivando-o dizendo-lhe "vais ser mestre de grande obra". Pode-se imaginar, portanto, o transtorno que este gesto significou para Tcholes. O seu pai desde sempre achava que a conquista de toda a região norte seria o culminar de um grande feito que traria prosperidade e desenvolvimento à região.
No campo amoroso Tcholes tinha tudo excepto estabilidade. Suas meretrizes não lhe traziam o conforto e incentivo emocional e espiritual de que ele tão desesperadamente necessitava e tentava alcançar. Tcholes afundava-se na sua própria miséria. O seu único escape era o campo de batalha.
Muito se bichanava acerca do conteúdo do discurso que iria proferir essa noite. Uns diziam que iria anunciar a sua retirada do comando dos destinos da RUCC, outros apontavam a expansão do império a terras gaulesas. Outros pensadores e intelectuais dessa muy nobre terra expunham a possibilidade de Tcholes anunciar um interregno nas hostilidades da expansão ficando invariavelmente à frente da RUCC.

Tcholes chegou cedo nessa manhã, de coche, sendo saudado na rua principal por todos a que lá acorreram com pétalas de rosas e cravos. Uma cena digna de uma recepção a um imperador romano. Tudo o que o rodeava era ele e ele era tudo.
Tcholes fitava a multidão com extrema intensidade. Os primeiros cabelos brancos tinham já irrompido pelos seus lóbulos capilares, as primeiras rugas começavam a cravar-lhe a face, a postura era a de quem tinha visto e presenciado tudo o que havia a ver e a presenciar e que nada o poderia surpreender ou apanhá-lo de surpresa. Um homem vivido portanto. Um homem que tinha traçado um longo caminho até chegar onde havia chegado, ao ponto de ter toda esta multidão a seus pés. Um longo caminho desde os dias em que pensava iniciar uma épica campanha pela qual todos o zombavam quando o jovem Tcholes tentava exprimir os seus sonhos. Uma pessoa calejada que transparecia esse facto no seu olhar e em toda a sua postura.
Essa degradação emocional e espiritual levariam-no a cometer um terrível acto a todo o seu povo de sempre e acima de tudo uma traição a si mesmo. Com a qual teria de confrontar o seu povo nesta sua visita. Algo tinha Tcholes escondido de tudo e todos durante estes últimos tempos. Ele próprio sabia que ninguém o iria perdoar. Nunca.
Já há algum tempo que Tcholes se sentia mais e mais vergado à pesada responsabilidade de comandar tamanha nação. Todos os seus jogos de interesses, trocas de influências e jogos sujos. A partir de certo momento Tcholes começara a ambicionar apenas uma vida simples, longe de toda esta imundície que caracterizava o comando de uma grande nação. Nada nem ninguém, no entanto, estava preparado para a realidade que Tcholes tinha escondida e estava prestes a revelar da forma mais inesperada.