sexta-feira, janeiro 19, 2007

“SEM RESPOSTA”

“Quando era muito pequeno achava que os meus pais sabiam tudo. Essa convicção dava-me uma grande tranquilidade. Os meus pais sabiam tudo, eram infinitamente poderosos, como o homem-aranha, como o super-homem, e estavam sempre por perto para me ajudarem. Ensinavam-me o nome das coisas, mostravam-me os perigos, salvavam-me dos monstros, estendiam-me a mão nos momentos difíceis. Mais tarde percebi que não era bem assim. Os meus pais sabiam quase tudo. Não tudo. Os meus pais eram frágeis e, como eu, também temiam muitos monstros. Passei então a acreditar nos professores. Entrei na universidade convencido de que os professores sabiam pelo menos tudo o que era importante saber sobre a matéria que nos iriam leccionar. Quando abandonei a universidade já não acreditava nos professores mas ainda acreditava nos juízes e na Justiça de uma forma geral. Agora já só acredito nas crianças – e apenas naquelas que estão a aprender a falar. Quem ainda não aprendeu a falar também, em princípio, não aprendeu a mentir. Há excepções. Há quem nunca aprenda a falar e, todavia, aprenda a mentir. Estou a pensar, por exemplo, em George Bush.
Acredito nas crianças e nos cães. Não confio nos gatos. Entretanto, tive um filho. Ele não acredita no Pai Natal. Não acredita em vampiros, nem em fadas, nem em bruxas, nem em anjos, nem em dragões. Não acredita que o Michael Jackson é negro. Já descobriu que os professores não sabem tudo e tem dificuldade em compreender para que serve um advogado. Explicou-me que quando as pessoas morrem não vão para o céu, não senhor, porque no céu só há nuvens e pássaros, e estrelas à noite. Quando as pessoas morrem vão para dentro de uma caixa com flores. Também não confia nos gatos. Nos cães, sim. Tem sobretudo uma enorme fé nele próprio. É um céptico precoce. Mas é um céptico feliz. Eu tento ensinar-lhe que é possível acreditar na humanidade mesmo sabendo que os professores não sabem tudo e que os juízes também erram. Mesmo sabendo que o Pai Natal não passa de um rapaz pobre, disfarçado de velho rico, que finge oferecer brinquedos para, de facto, os vender. Mesmo sabendo que George Bush é o presidente da América.
São mais as coisas para as quais não tenho resposta, hoje, do que quando era adolescente. Creio, porém, haver menos a recear de um homem com dúvidas, do que daquele que exibe graves certezas sobre tudo.
Sempre que revejo o famoso filme de Stanley Kubrick, “2001 – Odisseia no Espaço”, aflige-me a solidão do personagem ao longo das últimas imagens. Imaginemos a situação de dois inimigos que se tornassem nos últimos habitantes do planeta. Encontram-se um dia, frente a frente, e estão armados. Um pode matar o outro, a tiro ou à machadada, pouco importa, mas ficará sozinho para sempre. Têm de escolher entre a má companhia e a mais extrema solidão. Eu sei o que escolheria. Existe humanidade mesmo no pior dos seres humanos. Preferia, sinceramente, procurar essa humanidade em George Bush, em Osama Bin Laden, inclusive em Michael Jackson, que a mim me parece não tanto um ser transracial, mas antes um ser em transição de homem para boneco (nisto o meu filho também não acredita), do que ficar quarenta anos a vaguear sozinho por um planeta deserto.
Volta e meia oiço alguém defender, às gargalhadas, a ideia segundo a qual seria preferível os dirigentes mundiais resolverem os seus conflitos a soco, num ringue de boxe, do que através de guerras. Eu não rio. Não gosto de boxe. Não acharia graça se visse na televisão George Bush aos socos a Saddam Hussein. Poderia ser uma proposta interessante, isso sim, se trocássemos o boxe pelo xadrez. O xadrez é um desporto de cavalheiros. Joga-se sentado e pode-se saborear uma chávena de chá enquanto se joga. Não tenho a certeza se exige um pensamento, pois, afinal de contas, os computadores jogam xadrez muito bem, mas exige pelo menos o domínio perfeito de uma linguagem e de uma estratégia. Os diferentes povos do mundo teriam de passar a escolher os seus representantes, não já entre os cowboys, entre os culturistas ou os lutadores de boxe, e sim entre os estrategas. O mundo seria certamente um lugar melhor e eu não teria tantas dificuldades em responder a certas perguntas do meu filho.”


José Eduardo Agualusa, 25 de Janeiro de 2004

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4 Comments:

Blogger Catus said...

Na Grécia Antiga, quando dois exércitos se encontravam era decido entre os seus generais se partiam para um combate total ou apenas um "mano a mano" entre melhores guerreiros de cada um. Portanto esta ideia do Sr.Agualusa já não é nova.

O cepticismo, ainda para mais precoce aflige-me, como me lenvantaria todas as manhas para trabalhar ou estudar sabendo que vou acabar numa caixa cheia de flores?
Já que irá acabar assim, só há que esperar perdurar na memória de alguém.

Sim os gatos são manhosos e os cães das melhores companhias que se pode ter, pois são excelentes ouvintes.

19 janeiro, 2007 10:18  
Anonymous Anónimo said...

Infelizmente, tenho vindo a permitir que esse cepticismo se apodere de mim... mas ao contrário do comentário anterior não me sinto mal por ir acabar numa caixa cheia de flores... se acabar numa caixa cheia de flores significa que durante a minha vida fui capaz de desenvolver relaçoes intensas e eternas, que perduram até depois da morte... é de facto, não na memória, mas no coração daqueles que amamos e nos amaram que perduraremos sempre. Pior seria acabar numa caixa sem flores!
Ah, e os gatos são cautelosos nas relações... não os podemos criticar, pois não???

12 fevereiro, 2007 16:30  
Blogger Catus said...

Se fossemos como desconfiados como os gatos as relações ainda eram mais dificies. Pois atingir a confiança mútua levaria, se é que se atingia, demasiado tempo

13 fevereiro, 2007 21:34  
Anonymous Anónimo said...

pessoal visitem um blog poveiro onde se promete discutir tudo, e onde tudo poderá acontecer....http://ppldamistica.blogspot.com/

10 março, 2007 20:30  

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